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Desenvolvimento da versão em português do instrumento de avaliação de qualidade de vida da OMS (WHOQOL-100)

Development of the Portuguese version of the OMS evaluation instrument of quality of life

Resumos

A Organização Mundial da Saúde desenvolveu um instrumento para avaliação de qualidade de vida através de um projeto colaborativo multicêntrico. São descritas a metodologia e as diferentes etapas de desenvolvimento do instrumento original. A seguir, é apresentado o desenvolvimento da versão em português. Através de uma metodologia própria foi realizada a tradução, discussão em grupos focais com membros da comunidade, pacientes e profissionais de saúde, seguida de retrotradução. O objetivo dos grupos focais foi discutir a adequação da tradução e da seleção de itens para avaliar qualidade de vida em uma cidade brasileira (Porto Alegre). O trabalho em grupo focal mostrou que o Instrumento de avaliação de Qualidade de Vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL-100) apresenta condições para aplicação no Brasil em sua versão original em português.

Qualidade de vida; Organização Mundial da Saúde; transcultural; validade; escala de avaliação


The World Health Organization developed an instrument to assess quality of life in the framework of a collaborative multicentric project. The methodology and the different stages of developing the original instrument are described. Next, the developing of the portuguese version is presented. Through a singular methodology, translation and discussion in focal groups with community members, patients and health professionals were performed, followed by back translation. The goal of the focal groups was to discuss adequacy of translation and items selection for assessing quality of life in a brazilian city (Porto Alegre). The work in focal groups showed that the World Health Organization instrument to assess quality of life (WHOQOL-100) is ready to be piloted in Brazil in its portuguese version.

Quality of life; World Health Organization; cross-cultural; validity; rating scale


artigos originais

Desenvolvimento da versão em português do instrumento de avaliação de qualidade de vida da OMS (WHOQOL-100)

Development of the Portuguese version of the OMS evaluation instrument of quality of life

Marcelo Pio de Almeida Fleck1 1 . Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 . Professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 . Médicos psiquiatras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 . Acadêmicos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. , Ondina Fachel Leal2 1 . Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 . Professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 . Médicos psiquiatras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 . Acadêmicos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. , Sérgio Louzada3 1 . Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 . Professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 . Médicos psiquiatras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 . Acadêmicos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. , Marta Xavier3 1 . Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 . Professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 . Médicos psiquiatras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 . Acadêmicos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. , Eduardo Chachamovich4 1 . Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 . Professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 . Médicos psiquiatras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 . Acadêmicos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. , Guilherme Vieira4 1 . Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 . Professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 . Médicos psiquiatras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 . Acadêmicos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. , Lyssandra dos Santos4 1 . Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 . Professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 . Médicos psiquiatras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 . Acadêmicos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. , Vanessa Pinzon4 1 . Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 . Professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 . Médicos psiquiatras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 . Acadêmicos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

RESUMO

A Organização Mundial da Saúde desenvolveu um instrumento para avaliação de qualidade de vida através de um projeto colaborativo multicêntrico. São descritas a metodologia e as diferentes etapas de desenvolvimento do instrumento original. A seguir, é apresentado o desenvolvimento da versão em português. Através de uma metodologia própria foi realizada a tradução, discussão em grupos focais com membros da comunidade, pacientes e profissionais de saúde, seguida de retrotradução. O objetivo dos grupos focais foi discutir a adequação da tradução e da seleção de itens para avaliar qualidade de vida em uma cidade brasileira (Porto Alegre). O trabalho em grupo focal mostrou que o Instrumento de avaliação de Qualidade de Vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL-100) apresenta condições para aplicação no Brasil em sua versão original em português.

DESCRITORES

Qualidade de vida; Organização Mundial da Saúde; transcultural; validade; escala de avaliação

ABSTRACT

The World Health Organization developed an instrument to assess quality of life in the framework of a collaborative multicentric project. The methodology and the different stages of developing the original instrument are described. Next, the developing of the portuguese version is presented. Through a singular methodology, translation and discussion in focal groups with community members, patients and health professionals were performed, followed by back translation. The goal of the focal groups was to discuss adequacy of translation and items selection for assessing quality of life in a brazilian city (Porto Alegre). The work in focal groups showed that the World Health Organization instrument to assess quality of life (WHOQOL-100) is ready to be piloted in Brazil in its portuguese version.

KEYWORDS

Quality of life; World Health Organization; cross-cultural; validity; rating scale

Introdução

A expressão qualidade de vida foi empregada pela primeira vez pelo presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, em 1964, ao declarar que "os objetivos não podem ser medidos através do balanço dos bancos. Eles só podem ser medidos através da qualidade de vida que proporcionam às pessoas". O interesse em conceitos como "padrão de vida" e "qualidade de vida" foi inicialmente partilhado por cientistas sociais, filósofos e políticos. O crescente desenvolvimento tecnológico da Medicina e ciências afins trouxe como uma conseqüência negativa a sua progressiva desumanização. Assim, a preocupação com o conceito de "qualidade de vida" refere-se a um movimento dentro das ciências humanas e biológicas no sentido de valorizar parâmetros mais amplos que o controle de sintomas, a diminuição da mortalidade ou o aumento da expectativa de vida.

Assim, a avaliação da qualidade de vida foi acrescentada nos ensaios clínicos randomizados como a terceira dimensão a ser avaliada, além da eficácia (modificação da doença pelo efeito da droga) e da segurança (reação adversa a drogas).1 A oncologia foi a especialidade que, por excelência, se viu confrontada com a necessidade de avaliar as condições de vida dos pacientes que tinham sua sobrevida aumentada com os tratamentos propostos2, já que, muitas vezes, na busca de acrescentar "anos à vida", era deixada de lado a necessidade de acrescentar "vida aos anos".

O termo qualidade de vida, como vem sendo aplicado na literatura médica, não parece ter um único significado.3 "Condições de saúde", 'funcionamento social" e "qualidade de vida" têm sido usados como sinônimos4 e a própria definição de qualidade de vida não consta na maioria dos artigos que utilizam ou propõem instrumentos para sua avaliação.3Qualidade de vida relacionada com a saúde ("Health-related quality of life" ) e Estado subjetivo de saúde ("Subjective health status") são conceitos afins, centrados na avaliação subjetiva do paciente, mas necessariamente ligados ao impacto do estado de saúde sobre a capacidade do indivíduo de viver plenamente. Bullinger e cols.5 consideram que o termo qualidade de vida é mais geral e inclui uma variedade potencial maior de condições que podem afetar a percepção do indivíduo, seus sentimentos e comportamentos relacionados com o seu funcionamento diário, incluindo, mas não se limitando, a sua condição de saúde e as intervenções médicas.

Houve, na última década, uma proliferação de instrumentos de avaliação de qualidade de vida e afins, a maioria desenvolvidos nos Estados Unidos, com um crescente interesse em traduzi-los para aplicação em outras culturas. A aplicação transcultural através da tradução de qualquer instrumento de avaliação é um tema controverso. Alguns autores criticam a possibilidade de que o conceito de qualidade de vida possa não ser ligado à cultura.6 Por outro lado, em um nível abstrato, alguns autores têm considerado que existe um "universal cultural" de qualidade de vida, isto é, que, independente de nação, cultura ou época, é importante que as pessoas se sintam bem psicologicamente, possuam boas condições físicas e sintam-se socialmente integradas e funcionalmente competentes.5

A busca de um instrumento que avaliasse qualidade de vida dentro de uma perspectiva genuinamente internacional fez com que a Organização Mundial da Saúde desenvolvesse um projeto colaborativo multicêntrico. O resultado deste projeto foi a elaboração do WHOQOL-100, um instrumento de avaliação de qualidade de vida, composto por 100 itens.

Os objetivos deste trabalho são os seguintes: 1. descrever a metodologia utilizada pela Organização Mundial da Saúde para desenvolver o WHOQOL-100 e 2. apresentar o desenvolvimento de sua versão em português.

O desenvolvimento do WHOQOL-100

Os estágios do desenvolvimento do WHOQOL-100 estão descritos de forma mais detalhada em outros documentos da Organização Mundial da Sáude.7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16 , 17 A Tabela 1 resume os diferentes estágios.

Clarificação do conceito

Embora não haja um consenso a respeito do conceito de qualidade de vida, três aspectos fundamentais referentes ao construto qualidade de vida foram obtidos através de um grupo de experts de diferentes culturas: (1) subjetividade; (2) multidimensionalidade; (3) presença de dimensões positivas (ex. mobilidade) e negativas (ex. dor).

O desenvolvimento desses elementos conduziu a definição de qualidade de vida como "a percepção do indivíduo de sua posição na vida no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações" (WHOQOL GROUP, 1994). O reconhecimento da multidimensionalidade do construto refletiu-se na estrutura do instrumento baseada em seis domínios: domínio físico, domínio psicológico, nível de independência, relações sociais, meio ambiente e espiritualidade / religião / crenças pessoais.

Estudo piloto qualitativo

O estudo piloto qualitativo envolveu o desenvolvimento do construto qualidade de vida através das diferentes culturas. Os investigadores principais e consultores de cada centro relacionaram uma lista de domínios e subdomínios (facetas) para serem discutidos através da técnica de grupo focal com diferentes amostras, nos diferentes centros, utilizando indivíduos "normais", indivíduos portadores de doença e profissionais de saúde. Quinze centros estiveram envolvidos nesta etapa: Melbourne (Austrália), Zagreb (Croácia), Paris (França), Nova Delhi (Índia), Madras (Índia), Beer-Sheeva (Israel), Tóquio (Japão), Tilburg (Holanda), Panamá (Panamá), São Petersburgo (Rússia), Barcelona (Espanha), Bangkok (Tailândia), Bath (Reino Unido), Seattle (EUA), Harare (Zimbabwe).

Os grupos focais foram realizados com 6 a 8 indivíduos com características demográficas representativas da população-alvo. Nestes grupos, foram discutidos com os participantes de que forma cada faceta interferiria com a sua qualidade de vida e qual a melhor forma de perguntar sobre cada uma das facetas. Complementando o trabalho realizado nos grupos focais, foram realizados painéis para redação das questões que incluíam o investigador principal do centro, os moderadores dos grupos focais, além de uma pessoa leiga para assegurar que as questões fossem formuladas com uma linguagem natural e compreensível. Este painel formulava, no máximo, seis questões por faceta. O critério para o desenvolvimento das questões é mostrado na tabela 3 . As questões foram desenvolvidas para serem respondidas no período relativo às últimas duas semanas.

As sugestões provenientes de todos os centros foram reunidas, perfazendo aproximadamente 1.800 questões. Após a supressão das questões redundantes, semanticamente equivalentes ou que não preenchiam os critérios definidos na tabela 3, restaram 1.000 questões. A seguir, os investigadores principais de cada centro classificaram as questões de cada faceta de acordo com a pergunta "O quanto ela fornece informações sobre a qualidade de vida em sua cultura". A combinação da classificação das perguntas de todos os centros permitiu que 235 questões fossem selecionadas.

As questões do WHOQOL foram formuladas para uma escala de respostas do tipo Likert, com uma escala de intensidade (nada - extremamente), capacidade (nada - completamente), freqüência (nunca - sempre) e avaliação (muito insatisfeito - muito satisfeito; muito ruim - muito bom). Embora estes pontos âncoras sejam de fácil tradução nos diferentes idiomas, a escolha dos termos intermediários apresentam dificuldades de equivalência semântica (por exemplo entre as âncoras "nunca" e "sempre" existe "`as vezes", "freqüentemente", "muito freqüentemente", "muitas vezes" etc). A escolha das três palavras entre os dois pontos âncoras seguiram metodologia descrita na tabela 4.

Desenvolvimento do teste piloto

O instrumento piloto do WHOQOL 100 tinha 235 questões que avaliavam 29 facetas de qualidade de vida. A testagem deste instrumento envolveu a aplicação em 250 pacientes e 50 "normais" em 15 centros (n=4500). O plano de análise desses dados visava examinar a validade de construto das facetas e domínios do WHOQOL, selecionar as melhores questões para cada faceta e estabelecer a consistência interna e validade discriminante do instrumento.

Teste de campo

O quarto estágio consistiu em estabelecer a sensibilidade à mudança, confiabilidade teste-reteste, validade de critério, especificamente com relação às validades convergente, discriminante e preditiva. A versão do WHOQOL foi elaborada com 100 questões com escores de 6 domínios e 24 facetas (tabela 2).

A inclusão de novos centros

Após a elaboração do WHOQOL-100, novos centros foram admitidos, com vistas a ser utilizado por um número crescente de países. Para as novas versões foi estabelecido pelo grupo WHOQOL uma metodologia a ser seguida que consistia das seguintes etapas:

Tradução do Instrumento

A Organização Mundial da Saúde vem acumulando uma considerável experiência na tradução de instrumentos de avaliação em saúde.18 Esta metodologia, descrita na tabela 5, apresenta vantagens em relação àquela da tradução simples ou da tradução-retrotradução.

Preparação do teste piloto

A versão do WHOQOL-100 é discutida nos grupos focais do novo centro. Os grupos focais devem ser compostos por indivíduos representativos da população do centro em questão em relação ao sexo, idade, nível educacional, nível sócioeconômico, estado civil e grupo étnico. Devem ser compostos por 6 a 8 pessoas. Três categorias diferentes devem ser estudadas em cada centro, sendo realizados 2 grupos focais por categoria:

a) Pessoas em contato com um serviço de saúde- Este grupo deve ser composto por pacientes com doenças agudas, crônicas, pacientes ambulatoriais e internados com doenças de diferentes causas.

b) Pessoas da população geral, incluindo cuidadores informais- Este grupo deve ser composto por pessoas que representam a população "normal", bem como por indivíduos que cuidam de pessoas "doentes". Este grupo deve falar sobre a sua qualidade de vida e não sobre a qualidade de vida relativa aos "doentes" sob seus cuidados.

c) Profissionais da área de saúde- Pessoas que trabalham nos hospitais participantes devem ser convidadas. Podem incluir enfermeiras, assistentes sociais, psicólogos clínicos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas e médicos. O grupo de profissionais de saúde é convidado a discutir a qualidade de vida dos pacientes sob os seus cuidados.

Os grupos focais dos novos centros podem propor questões adicionais para facetas já existentes que devem ser anexadas ao WHOQOL-100 como questões adicionais nacionais. A formulação destas questões deve seguir as recomendações propostas nos critérios para o desenvolvimento de questões (tabela 3). Os grupos focais podem também propor facetas adicionais. As novas facetas devem ser acompanhadas de uma definição e de pelo menos quatro questões para serem investigadas.

Desenvolvimento das escalas de respostas

As escalas de respostas referentes aos quatro tipos básicos de questões (intensidade, capacidade, freqüência e avaliação) devem ser desenvolvidas no idioma do centro, utilizando a metodologia descrita na tabela 4.

Administração do piloto

O instrumento deve ser aplicado em 300 pessoas adultas, sendo o conceito de "adulto" culturalmente definido pelo centro em questão. Em relação à idade, 50% devem ter menos que 45 anos, 50% devem ser homens, 250 devem ser pacientes vinculados a um serviço de saúde e 50 indivíduos "normais". É importante que a amostra seja composta por pacientes com diferentes níveis de qualidade de vida. Uma forma de obter esta heterogeneidade na amostra é incluir pacientes com doenças crônicas severas, pacientes com doenças transitórias mais leves e outros procurando atendimento médico por condições que teoricamente pouco modificariam sua qualidade de vida (ex. hipertensão arterial leve). Um mínimo de 50 pessoas (25 "normais" e 25 "doentes") cujo estado de saúde é improvável de mudar substancialmente no decorrer das semanas seguintes deverá ser seguido e retestado 2 a 4 semanas após a primeira aplicação.

O desenvolvimento da versão em português do WHOQOL-100

A versão em português do WHOQOL-100 foi desenvolvida no Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.

Método

A tradução do Instrumento

A tradução para o português foi realizada seguindo metodologia apresentada na tabela 5. A tradução inicial foi realizada por um tradutor com familiaridade com a tradução de instrumentos e conhecedor da literatura referente a ciências sociais. A seguir, foi realizado um painel bilíngüe composto por um psiquiatra, professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (M.F.), uma professora de antropologia da mesma universidade (O. F.L.) e três residentes em psiquiatria do 3º ano. Após alguns ajustes, a tradução foi discutida em quatro grupos focais distintos compostos por 1) pacientes internados no Hospital de Clínicas de Porto Alegre; 2) pacientes do ambulatório do Hospital de Clínicas de Porto Alegre; 3) profissionais de saúde e 4) pessoas da comunidade (alunos do curso de mestrado em antropologia). A formulação das questões no original em inglês, seguindo uma metodologia que enfatiza a clareza, objetividade e simplicidade, facilitou o processo de tradução. Optou-se por manter palavras de uso corrente na língua portuguesa. A retrotradução para o inglês por um tradutor independente mostrou que a versão em português guardava forte semelhança com a versão do instrumento original.

Discussão em grupos focais da versão em português

A versão em português do WHOQOL-100 foi discutida em quatro grupos focais na cidade de Porto Alegre, sul do Brasil. Os grupos focais foram compostos por indivíduos representativos das características demográficas da população que procura o Hospital de Clínicas de Porto Alegre em relação ao sexo, idade, nível educacional e nível sócioeconômico. Os participantes dos grupos focais preencheram um termo de consentimento informado para a realização do estudo. Os grupos foram compostos por 6 a 8 pessoas. Três membros da equipe envolvida no projeto participaram de cada sessão: um como coordenador, outro anotando os aspectos relevantes da discussão e um terceiro realizando a gravação da sessão em fita cassete.

A duração média das sessões foi de 2 horas, sendo realizada uma sessão com cada grupo de participantes.

Foram realizados os seguintes grupos focais:

Grupo 1: Pessoas da população geral. Foi composto por sete pessoas (quatro mulheres e três homens) com média de 28 anos de idade (25 a 35). Todos eram estudantes universitários, alunos de pós-graduação em antropologia. Foram selecionados a partir de um convite aberto aos interessados em analisar o instrumento.

Grupo 2: Profissionais da área de saúde. Foi composto por sete indivíduos (seis mulheres e um homem) com média de idade de 33 anos (25 a 47). Foram selecionados de acordo com sua disponibilidade em participar no dia proposto. Participaram três enfermeiras, um psicólogo, um terapeuta ocupacional e dois médicos residentes (psiquiatria e medicina interna). Este grupo foi centrado na qualidade de vida dos pacientes por eles atendidos.

Grupo 3: Pacientes internados. Neste grupo participaram sete pacientes (quatro mulheres e três homens). A média de idade foi de 62 anos (36 a 71). Em relação ao diagnóstico, três eram pacientes deprimidos em remissão, um estava em investigação diagnóstica por dores abdominais, um apresentava infecção respiratória com doença bronco-pulmonar obstrutiva crônica, um estava em investigação de uma doença hepática e o último apresentava litíase renal. Foram selecionados a partir de sua disposição em participar mediante um convite aberto.

Grupo 4: Pacientes ambulatoriais: Foi composto por sete indivíduos (quatro mulheres e três homens). Todos eram portadores de doenças crônicas como obesidade, dislipidemia, diabetes, gastrite, cardiopatia isquêmica, hipertensão arterial e alguns apresentavam comorbidade entre estes diferentes diagnósticos. Todos esses pacientes seguiam algum programa regular de cuidado de saúde com o serviço de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Foram selecionados através de um convite pela equipe responsável pelo atendimento, a partir da disponibilidade de vir ao hospital para a atividade do grupo focal.

Os objetivos dos grupos focais foram 1. revisar a formulação e a compreensão das 100 questões do questionário; 2. discutir o quanto cada uma das facetas afetava a qualidade de vida das pessoas; 3. investigar a existência de outras facetas não investigadas que poderiam ser importantes especificamente para o Brasil.

Desenvolvimento das escalas de respostas

As perguntas do WHOQOL-100 possuem quatro tipos de escalas de resposta: intensidade, capacidade, avaliação e freqüência. A escala de intensidade será utilizada para exemplificar a metodologia proposta (conforme tabela 4). Entre as âncoras "nada" (0%) e "extremamente" (100%) foram listadas 15 palavras que descreviam diferentes graduações entre esses dois extremos. Cada uma das palavras foi colocada em uma escala analógica de 100mm, tendo as duas âncoras como extremos. A seguir, vinte indivíduos graduaram na escala analógica cada uma das palavras. Foram calculados a média e o desvio padrão de cada uma das palavras. A palavra selecionada para o descritor 25% foi aquela que teve média entre 20mm e 30mm e o menor desvio padrão ("muito pouco"); para o descritor de 50% escolheu-se a que teve média entre 45mm e 55mm e o menor desvio padrão ("mais ou menos") e para o descritor de 75% a que teve média entre 70mm e 80mm ("bastante"), já que ambas tinham o menor desvio padrão.

Para as escalas de avaliação, capacidade e freqüência utilizou-se a mesma metodologia. A tabela 7 mostra as palavras selecionadas.

Resultados

Tradução

Os grupos focais sugeriram pequenas modificações na maneira de formular as questões. Estas sugestões foram posteriormente discutidas num segundo painel bilíngüe, sendo incorporadas à versão final do instrumento. O painel decidiu manter as sugestões que fornecessem o sinônimo mais simples e de uso comum para facilitar o entendimento pelo maior número de pessoas.

Um problema que diz respeito à versão em português e ocorrido em outras versões de línguas latinas (como o francês, CARIA, comunicação pessoal) foi a tradução de algumas questões de avaliação ( ex. "How satisfied .....?" ou "How difficult... "). A formulação "Quão....." (ex. "Quão satisfeito...? ou "Quão difícil....") é a gramaticalmente correta em português. O painel bilíngüe discutiu o fato de não ser uma formulação de uso corrente no sul do Brasil. Decidiu-se manter esta formulação para ser discutida nos grupos focais. Os pacientes, mesmo os de nível educacional mais baixo, consideraram que, embora não usassem tal expressão no seu vocabulário diário, diziam entendê-la perfeitamente como sendo semelhante a "Quanto", "para ver a quantidade de dificuldade".

Validade

A lista de facetas foi considerada como válida pela grande maioria dos participantes. Pessoas da comunidade, pacientes (internados e ambulatoriais), bem como profissionais de saúde, salientaram que as facetas descrevem de forma detalhada o que cada um dos participantes entende por qualidade de vida no seu meio ambiente.

Os pacientes internados por mais de duas semanas encontraram alguma dificuldade em discriminar se as questões referiam-se a antes da hospitalização ou se deveriam responder baseados na qualidade de vida dentro do hospital.

O grupo focal com pessoas da comunidade considerou que existiam mais questões que avaliavam locomoção em detrimento de questões que avaliavam visão, linguagem e códigos sociais. Foi considerado pelo grupo que, na faceta apoio social, houve uma ênfase na possibilidade de "receber" em relação à capacidade de "dar" apoio social. Este grupo, composto por estudantes do pós-graduação em antropologia, identificou um referencial "individualista" para avaliação de qualidade de vida. Esta consideração não foi reforçada por pacientes e profissionais de saúde.

Questões relativas a cada faceta

As 24 facetas (tabela 2) foram consideradas relevantes por todos os grupos. Pacientes e pessoas da comunidade consideraram que o instrumento é também uma oportunidade para refletir acerca de importantes aspectos de suas próprias vidas de uma forma sistemática: uma oportunidade de "parar para pensar". Alguns pacientes relataram que o instrumento traz questionamentos capazes de motivá-los para buscar um aprofundamento com um psicólogo, psiquiatra ou o próprio médico. Um paciente com leucemia descreveu-se ansioso com algumas questões.

Discussão e perspectivas

O trabalho com os grupos focais permitiu concluir que as questões de qualidade de vida apresentam uma boa validade de face, quando examinadas por pessoas da comunidade, pacientes ambulatoriais e hospitalizados e profissionais de saúde da cidade de Porto Alegre, Brasil. A simplicidade do vocabulário e da estrutura da formulação das questões facilita a leitura mesmo por pessoas com nível educacional baixo e com vocabulário restrito. Por tratar-se de um auto-questionário, ele apresenta os problemas inerentes a este método em populações de baixo nível educacional.

O WHOQOL-100 está atualmente disponível em 20 idiomas .17 O teste de campo da versão em português do WHOQOL-100 foi realizado com 300 pessoas , sendo 250 pacientes e 50 "normais". Os dados referentes às características psicométricas da versão em português aplicadas no Brasil serão publicadas em outro trabalho. A versão breve do WHOQOL-100, composta por 26 itens, também está disponível em português e seu teste de campo acaba de ser concluído. Estudo de suas características psicométricas será objeto de outras publicações.

As possíveis aplicações deste instrumento são variadas: como instrumento auxiliar na prática clínica; como forma de aprimorar a relação médico-paciente; como instrumento de avaliação e comparação de resposta a diferentes tratamentos em especialidades médicas diversas; como instrumento de avaliação de serviços de saúde bem como de avaliação de políticas de saúde.

Agradecimentos

Os autores agradecem os componentes do WHOQOL. O Grupo WHOQOL compreende um grupo coordenador, investigadores colaboradores nos centros originais, investigadores colaboradores dos novos centros e um painel de consultores. Dr. J. Orley dirige o projeto assistido pelo Dr. W.Kuyken, Dr. N. Sartorius, Dr. M. Power e Dr. R. Billington. Nos centros colaboradores originais os investigadores são: Professor H. Herrman, Dr. H. Shofield and Ms. Murphy, University of Melbourne, Australia; Professor Z. Metelko, Professor S. Szabo and Mrs. Pibernik-Okanicov, Institute of Diabetes, Endocrinology and Metabolic Diseases and Department of Psychology, Faculty of Philosophy, University of Zagreb, Croácia; Dr. N. Quemada and Dr. A Caria, INSERM, Paris, France; DR. S. Rajkumar and Mrs. Shuba Kumar, Madras, Medical College, Índia; Dr. S. Saxena, All India Institute of Medical Sciences, New Delhi, Índia; Dr. D. Bar-On and Dr. M. Amir, Bem-Gurion Univerdity, Beer-Sheeva , Israel; Dr. Miyako Tazaki, Department of Science, Science University of Tokyo, Japan and Dr. Ariko Noji, Department of Community Health Nursing, ST. Luke's College of Nursing, Japão; Dr. G. van Heck and Mrs. J. De Vries, Tilburg University, Holanda; Professor J. Arroyo Sucre and Professor L. Picard-Ami, University of Panama, Panamá; Professor M. Kabanov, Dr. A Lomachenkov and Dr. G. Burkovsky, Bekhterev Psychoneurological Research Institute, ST. Petersburg, Rússia; Dr. R. Lucas Carrasco, Barcelona, Espanha; Dr. Yooth Bodharamik and Mr. Kiticorn Meesapya, Institute of Mental Health, Bangcoc, Tailândia; Dr. S. Skevington, University of Bath, Reino Unido; Dr. D. Patrick, Ms. M. Martin and Ms. D. Wild, University of Washington, Seattle, USA e Professor W. Acuda, Dr. J. Mutambirwa, University of Zimbabwe, Harare, Zimbabwe.

Nos novos centros os investigadores são: Dra. Sylvia Bonicatto, FUNDONAR, Fundacion Oncológica Argentina, La Plata, Argentina; Dr. Gao Yonping, Hebei Mental Health Center, Hebei, China; Dr. Marcelo P. A . Fleck, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil; Dra. Anita Motzahn, Faculty of Human and Social Development, University of Victoria, Victoria BC, Canadá;

Dr. Ginette Page, School of Nursing University of Quebec, Rimouski, Canadá; Professor Jiqian Fang, Department of Medical Statistics and Community Medicine School of Public Health, GuangZhou, China; Professor M.C. Angermeyer, Klinik und Poliklinik fûr Psychiatrie, Leipzig, Alemanha; Mr. Leung Kwok-fai, Department of Occupational Therapy Queen Elizabeth Hospital, Kowloon, Hong-Kong; Dr. Judith Harangozo, Semmelweiss University of Medicine, Dr. Lajos Kullmannn, National Institute for Medical Rehabilitation, Budapeste, Hungria; Dr. G. de Girolamo, Department of Mental Health, Bolonha, Itália; Dr. Mary Kalfoss, Department of Public Health and Primary Health Care, Division of Nursing Science, University of Bergen, Bergen, Noruega; Dr. Malik H. Mubbashar, Department of Psychiatry, Rawalpindi General Hospital, Rawalpindi, Paquistão; Professor Ingela Wiklund, Health Economics & Quality of Life, Mölndal, Suécia; Dr. Caner Fidaner, Balçova/Izmir, Turquia; Professor Per Bech, Psychiatric Research Unit, Hilerod, Dinamarca; Professor Mare Teichmann, Tallinn Technical University, Tallinn, Estônia.

Um painel internacional incluiu: Dr. N.K. Aaronson, Dr. P. Bech, Dr. M. Bullinger, Dr. He-Nian Chen, Dr. J. Fox-Rushby, Dr. C. Moinpour and Dr. R. Bosser. Consultores que contribuíram com a OMS nos vários estágios do desenvolvimento do projeto incluíram: Dr. D. Buesching, Dr. D. Bucquet, Dr. L.W. Chambers, Dr. B. Jambon, Dr. C.D. Jenkins, Dr. D. De Leo, Dr. L. Fallowfield, Dr. P. Gerin, Dr. P. Graham, Dr. O . Gureje, Dr. K. Kalumba, Dr. Kerr-Correa, Dr. C. Mercier, Mr. J. Oliver, Dr. Y. H. Poortinga, Dr. R. Trotter e Dr. F. van Dam.

Correspondência

Marcelo Pio de Almeida Fleck

Departamento de Psiquiatria e Medician Legal da Universidade Federal do RS

Rua Ramiro Barcellos 2350, 4° andar.

CEP: 90035-003 - Porto Alegre - RS - Brasil

Email: mfleck@voyager.com.br.

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  • 12. Orley J. The World Health Organization (WHO): Quality of Life Project. In: Trimble M, Dodson W. Epilepsy and quality of life. New York: Raven Press;1994.p 99-108.
  • 13.World Health Organization. Field Trial WHOQOL-100 February 1995. The 100 questions with response scales. Genebra: WHO; 1995a. MNH/PSF/95.1D Rev.1
  • 14. World Health Organization. Field trial WHOQOL-100 February 1995. Scoring the WHOQOL. Genebra: WHO; 1995. MNH/ PSF/95.1F
  • 15. World Health Organization. Resources for new WHOQOL centers. Genebra:WHO;1995c. MNH/PSF/95.2
  • 16. World Health Organization. Summary of analyses of WHOQOL pilot data. Genebra: WHO;1995d. MNH/PSF/95.3
  • 17. World Health Organization. WHOQOL: measuring quality of life. Genebra:WHO;1997. MAS/MNH/PSF/97.4
  • 18. Sartorius N , Kuyken W. Translation of health status instruments. In: Orley J , Kuyken W, (editors). Quality of life assessment: international perspectives. Heidelberg: Springer Verlag, 1994.p 3-18.
  • 1
    . Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
    2
    . Professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
    3
    . Médicos psiquiatras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
    4
    . Acadêmicos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jun 2000
    • Data do Fascículo
      Mar 1999
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